No percurso de combate à má-gestão, ao desvio de fundos públicos, ao despesismo, ao esbanjamento e a corrupção, mantive, desde o tempo de partido único, erecta a coluna vertebral, como homem de causas sociais, próximas da ideologia de esquerda cidadã.
Por William Tonet
Nunca me escondi por debaixo das saias do militantismo barroco, do “mesmismo”, do “social-facilitismo”, da cega ambição pelo poder ou da contestação covarde, no interior das casas de banho dos quintais.
Falei alto. Dei a cara. Assumi, a voz, publicamente, em cadeia nacional de TV, num programa denominado Panorama Económico, exibido na TPA (Televisão Popular de Angola). Já à época a denúncia à má-gestão, às práticas danosas e, quantas vezes dolosas, dos gestores “partido-públicos”, faziam parte do acervo denunciativo dos programas.
Percebi cedo a falsidade da equação peregrina de igualdade ao invés de equidade, contrária a lógica de dividir para melhor reinar, repristinando a velha máxima do colonialismo português. O verbo era um: Todos iguais, a prática outra: Nós do MPLA, que descaradamente seguiam em sentido contrário as teses do socialismo de Marx.
A corrupção nasceu em 1975, com a institucionalização pelos pseudos-revolucionários das famosas lojas do povo e loja dos dirigentes. Aqui nasceu a semente da podridão do serviço público e a discriminação da cidadania… Muitos fingem, esquecimento sobre este quadro dantesco, como se não tivesse paternidade. Felizmente, a memória colectiva impede, que outros tantos de nós o faça, para a culpa não morrer solteira.
É crime esquecer que, na calada, das noites pós independência, em que a maioria fazia da utopia uma esperança superior ao consulado colonial e de escravatura, muitos dirigentes proletários, do MPLA (meu partido, na altura), já abraçavam as máquinas de calcular capitalistas, com uma voracidade multiplicativa, de gamanço, superior a dos comerciantes coloniais de 500 anos…
Criaram, quais socialistas de pacotilha, com gravatas de “o mais importante é resolver os problemas do povo”, as primeiras traições, obrigando-nos a humilhação de pernoitar, madrugadas incontáveis, em filas para a compra de sapatos, roupa, pão e sal, inexistentes nas muitas noites coloniais em que até os indígenas faziam e compravam a fiado.
Nunca, no mundo, nenhum povo, desesperado deu nome as pedras como os angolanos, no tempo de partido único, pois estas, devido ao recolher obrigatório, tinham um peso e importância incomensurável, por perfilarem-se, erectas, numa fila (bicha, entre nós) diante da porta de uma loja ou estabelecimento comercial, em representação exclusiva e nominal dos Matondo, Ngueve, João e António, que as recolhiam, mandando-as descansar, na troca, as 5h00 da manhã.
Este quadro por encerrar injustiça distributiva, obteve sempre condenação do meu disco duro mental e, publicamente, não temendo as cadeias, em nome dos ideais de liberdade, equidade, justiça, pluralismo de ideias, apanágio de qualquer revolucionário democrata, comprometido com o bem comum.
Um compromisso que abomina o projecto de chafarizes e tanques de água residenciais e comerciais, abastecidos por carros-cisternas, inclusive com honra de inauguração, pelo presidente José Eduardo dos Santos, por exemplo no Sambizanga, construídos pela Tecnocarro, quando somos detentores de uma das maiores riquezas hidrográficas da região, do continente e do mundo.
Muitas destas mazelas do passado, feitas presentes, serão possíveis de alteração, quando o país tiver líderes com capacidade de bem servir, bem gerir, bem aproveitar os recursos humanos, fora do escopo ideológico, dando horizonte ao aproveitamento dos diferentes e das inteligências cidadãs.
Fazer contas desiguais tem levado o país de derrota em derrota até a derrota final, porquanto elas (contas) nunca foram iguais, porque os proletários do poder, na lógica da discriminação, subtraírem sempre a melhor parte do povo, para os seus porões umbilicais, com o carimbo de libertadores, como se o país fosse seu projecto partidocrata.
Nunca servi senhores da corte, nem proletários transfigurados em vampiros, que a mais de 43 anos (1975-2019), sugam, indiscriminadamente, o sangue e a vida de milhões de pobres, em nome da manutenção de um projecto de poder, que delapida as riquezas do país, para proveito de um só partido e seus dirigentes.
Por isso, mesmo naquele tempo (anos 70/80), em que muitas vozes, aprisionadas caminhavam nas avenidas do unanimismo, por fidelidade a partidocracia única, que bania a oposição política e o multipartidarismo, ousei, levantar a voz da cidadania, inconformado com o falso socialismo, incutido pelo MPLA e Agostinho Neto, um líder obcecado que assassinou cerca de 80 mil cidadãos, sem julgamento. O tempo passa, mas numa clara alusão que o crime não é endémico, mas sistémico, nunca o regime se dignou, em conceder o básico, em qualquer país racional e de gente crente no bem, que são as certidões de óbito, daqueles que perderam a vida nos porões da ditadura.
De muito cedo, repito, apercebi-me (ainda como membro do partido/Estado, assumo isso, biograficamente), por não ter venda nos olhos, ao ponto de não enxergar o óbvio da maldade. O caminho implantado pelo regime, desde 1975, era e é sinuoso, sectário e discriminador, formula incapaz de construir, um sério projecto-país. A actual constituição, parida das entranhas do MPLA é um hino a manutenção da ditadura, com artigos que falam em democracia, mas com capítulos que exaltam a fraude e a concentração de poder, numa só pessoa, nomeada na lógica de uma monarquia partidária.
Por esta razão nunca combati pessoas, mas a forma como estas desempenham as funções, enquanto agentes públicos, com mandato de nomeação ou eleição fraudulenta.
Como jornalista e crítico sempre me opus aos excessos dos actos de governação, quando contrários a lógica, de José Eduardo dos Santos, da sua aparente omissão, ao peculato, nepotismo e bandidismo de colarinho branco, avenida para a consolidação da corrupção, implantada em Angola, se quisermos ser honestos, pelo MPLA.
Acabar com o cancro da corrupção, só será possível se houver um pacto de regime, para estancar a gangrena, alojada na espinha dorsal do regime, não de partido único, mas de único partido, cujo líder detém todos os poderes, inclusive de colocar sobre a sua bota os poderes judiciário e legislativo que, vergonhosamente, navegam subservientes.
Eu sempre ressaltei, nas minhas críticas, a grande importância do combate a corrupção, operação que poderá desvendar, não um ninho de marimbondos, mas um grau de capilaridade de corrupção que nenhum de nós poderá imaginar, nem o jornalismo investigativo, por estar nas veias sanguíneas de todo um regime, no ADN de cada seu integrante, sem excepção desde 1975.
Saúdo a coragem de João Lourenço ter hasteado, também, como outros partidos e actores políticos, assumir a necessidade de um sério combate a corrupção.
Mas não devia ter dado o mote. Devia! Mas, “ab initio” (desde o início) pecou por conferir a esse combate, exclusividade e visão parcial, excluindo a tribo política, alheia ao poder. Ademais quer fazê-lo, através de órgãos sem independência funcional e mental, onde, também, se implantou, institucional e partidocratamente, o peculato, o nepotismo e o partidarismo de Estado.
A maioria da cúpula do Ministério Público, da Procuradoria-Geral da República, dos Tribunais superiores é empresária, com um enriquecimento ilícito, incapaz de justificar, através do salário. Isso impõe uma séria reforma para credibilizar tão importantes órgãos, por mais que obcecados apoiantes, mesmo da intelectualidade, não percebam, nem percebe, os alertas.
A paternidade de tão hercúleo combate, tem estado, nestes dois anos a estimular, cada vez mais, o controlo dos órgãos de justiça e parlamentar, aprisionando-os a vontade do dono da vez, que em função disso, não tem estímulos para alterar a Constituição ou abdicar da sua perpetuação no poder.
É impossível, face à mentalidade do mando, posso e quero, um dirigente augurar um futuro tranquilo, depois de abrir fissuras internas (partido do regime), impor a lei da rolha, na direcção do MPLA vide, Boavida Neto, eleger mediocridade, competente no “yes man”, privilegiar a linguagem vingativa do “Nós” e “Eles”, repousar seguro, face a banalidade das leis, que hoje hasteia.
Quem assim gere o Estado, não tem estrutura mental, para trabalhar para uma regular e democrática alternância de poder. Tanto assim é que para lá do show-off de mandar alguns ricos do seu clube, para a prisão, desferiu os mais duros golpes contra os 20 milhões de pobres, através da operação resgate, tornando-os mais pobres e agora, sem o direito de puder comer, sequer coxa, pois a caixa subiu para 10 mil Kwanzas, mais de 70% do salário mínimo. Uma barbárie. Um crime.
O mérito, se disso podemos falar, foi João Lourenço na sua cruzada ter amedrontado o dinheiro, intimidado os empresários e empreendedores, reunir sempre com as mesmas classes que não se renovam e muitos, inclusive, da associação industrial, foram responsáveis da transformação das indústrias em armazéns e, com isso, o país está parado, na falência.
Hoje, quando recebo a confirmação da entrada de novos e subida de mais impostos e, em contraponto, a comemoração de projectos faraónicos, para beneficiar a minoria partidocrata, acredito mais numa sublevação social, que na eficácia de um combate a corrupção e recuperação económica do país.
Finalmente, Senhor Presidente da República, peço-lhe uma audiência de 30 segundos, com um único ponto na agenda: Ouça os diferentes!
Ouça o povo Khoissan, primeiro povo Ngola, discriminado, até na Constituição.
Ouça o país real. Ouça quem não aparece nos holofotes, mas conhece a dor real daqueles que sofrem na marginalidade da vida, mas ainda têm fé, na sua ancestral Angola.
Ouça, para não acabar a carreira política na margem do desprezo colectivo, face ao cinismo de muitos que o rodeiam e lhe dão palmadinhas nas costas para continuar a errar.
Ilustração: Imagem criada por José Filipe Rodrigues